O dia amanheceu cinza e chuvoso. Clarissa levantou da cama implorando para que sua alma acompanhasse seu corpo. Ela olhou o celular e viu várias ligações não atendidas de Lara, sua melhor amiga.
“O que pode ter acontecido para ela ter me ligado tantas vezes? Agora está muito cedo para ligar para ela.” Ela pensava enquanto via o relógio marcando 6:02 da manhã. “Estou dois minutos atrasada.”
Ela tinha uma reunião importante no primeiro horário da manhã e não ia perder sua aula de boxe por nenhum compromisso no mundo. Depois de olhar para o teto por quase cinco minutos, repassando seu dia lotado de compromissos, ela tomou coragem e se levantou da cama.
“Preciso investir menos em roupa de cama. Está cada vez mais difícil de sair da cama.” Ela pensava, rindo de si mesma enquanto levantava da cama. A cama ainda estava arrumada. O lado oposto dela, estava impecável, como todos os travesseiros e almofadas no lugar. Ela entrou no closet e parou um minuto na frente das inúmeras opções que ela tinha para vestir.
O closet dela era de cair o queixo. Ela era apaixonada por moda e tinha um estilo único. Os cabides traziam camisas e vestidos belíssimos dos mais variados tecidos e eram ordenados por cor. E exibiam de maneira ordenada e impecável, peças de grife como Dior, Chanel, Balenciaga, Prada, Chloe e Louis Vuitton. Seu trabalho como consultora sênior na consultoria Everest, que era a mais importante do mundo, demandava que ela estivesse sempre impecavelmente vestida e monocromática também. O ambiente era formal e dominado por homens ambiciosos e bem sucedidos que estavam sempre impecavelmente vestidos, sem um único fio de cabelo fora do lugar, que eram muito inteligentes e nada sentimentais. Clarissa desconfiava que sequer coração tinham. Para sobreviver naquele ambiente ela precisava se impor e abrir mão de sua paixão por moda. Ela tinha dezenas de peças super exclusivas, ainda com etiqueta, esperando uma oportunidade para serem usadas. Ultimamente ela trabalhava cerca de 13 horas por dia e não conseguia fazer nada, além de trabalhar. Ela tinha faltado no último Natal, no aniversário das duas afilhadas e já não tirava férias há dois anos. Ela achava um milagre ainda ter Lara ao seu lado, porque ela tinha se tornado uma amiga invisível, completamente ausente. Mas ela acreditava que toda aquela renuncia valeria à pena. Há dois anos tinha ido trabalhar na divisão de fusões e aquisições, ajudando companhias bilionárias a ficarem ainda mais bilionárias através de aquisição de novas empresas. Ela acreditava que se tivesse mais alguns projetos bem sucedidos, depois de muito sucesso nos últimos casos que conduziu, ela finalmente se tornaria sócia da consultoria, aos 30 anos, que era sua meta profissional, desde que tinha começado a faculdade de administração em Harvard, nos Estados Unidos. Aquela tinha sido sua primeira vitória na carreira, que vinha sendo tão bem sucedida até ali.
Ela pegou um terninho de tweed preto bem clássico, composto por calça e blazer da Chanel, uma camisa branca, scarpins Louboutin pretos de salto muito altos e colocou na mochila. Vestiu sua roupa de ginastica e apenas prendeu o cabelo, sem pentear, rezando para conseguir desembaraçar durante o banho, que tomaria na academia, depois da aula de boxe, antes de ir para o trabalho.
Ela deixou suas coisas perto da porta e foi até a cozinha, recém reformada com o arquiteto mais famoso do momento. O apartamento todo tinha sido reformado, ela vivia cercada por sofás com design, molduras de madeira e obras de arte nas pareces e pequenos enfeites espalhados por mesas com luminárias caríssimas, que ela nunca usava, pois nunca estava em casa. A casa estava impecavelmente arrumada. Os moveis brilhavam de tão limpos e não tinha nada fora do lugar. Ela olhou para o bar feito na sala de jantar enquanto esperava a máquina de café expresso preparar seu café, e achou graça. “Tenho esse bar lindo, repleto de bebidas de qualidade, há três meses e nunca cheguei nem perto de abrir nenhuma dessas garrafas. Aliás, eu nunca cheguei nem perto desse bar. Onde minha vida me trouxe? Hoje vou tomar uma garrafa de vinho inteira, nesse sofá.” O café dela ficou pronto a arrancando de seus devaneios e ela tomou em um gole só. Pegou suas coisas, bolsa e chave do carro e voou para a garagem, deixando sua casa impecavelmente arrumada e intocada para trás.
O transito estava caótico, chovia muito, o dia parecia noite e ainda não eram sete da manhã. Era início de junho e aquele parecia um dia típico de inverno, que claramente estava sendo antecipado naquele ano.
Todo stress começou a deixar o corpo e a mente dela no momento em que ela deu o primeiro soco saco de areia.
– Estamos bastante empenhadas hoje! – disse o professor olhando para os movimentos dela. – Estou gostando de ver. Você está melhor a cada dia.
Ela apenas sorriu, mas não respondeu, mantendo a concentração. Naquela manhã, ela estava ainda melhor que o habitual. Ela terminou a aula e foi fazer alguns minutos de esteira antes de ir tomar banho.
Ela começava a caminhar em cima da esteira quando Lara ligou.
– Olha só quem caiu da cama hoje! – disse Clarissa ao atender o telefone, quase correndo em cima da esteira.
– Eu estou desesperada para te contar uma tremenda novidade.
– Então me conte!
– O Bruno me pediu em casamento ontem. Eu vou me casar.
Clarissa ficou em choque com a notícia. Acabou se distraindo na esteira e despencou, sem nenhuma classe. Ela ainda acabou sendo arrastada para fora do aparelho.
– Ai meu Deus! – ela disse enquanto caia.
– Ai meu Deus! – Lara repetiu eufórica, sem entender o que estava acontecendo. – Hey não vai falar mais nada. Está aí ainda?
– Sim! Estou aqui. – respondeu Clarissa já em pé. – Que novidade! Você estava repensando a vida ontem à tarde e de repente domingo à noite tudo mudou. Minha melhor amiga vai se casar. Parabéns. – ela disse tentando soar animada, mas desesperada por perder sua melhor e única amiga. Agora ela sentia que ficaria infeliz e sozinha para sempre. Lara era a super parceira de vida de Clarissa e ela não conseguia imaginar essa nova relação, onde sua melhor amiga seria esposa de alguém e disponível por tempo limitado. Não que Clarissa usasse de fato o tempo ilimitado porque sua carreira e sua rotina de trabalho não permitiam, mas era reconfortante saber que a Lara estava ali.
– E as novidades não acabaram.
– Tem mais? – foi tudo que Clarissa conseguiu dizer, incrédula.
– Sim! Está sentada?
– Não! Mas depois de despencar da esteira, acho melhor eu me sentar.
– Você caiu da esteira?
– Aham. Fala logo Lara, vai acabar me matando do coração.
– Vamos nos casar no começo de julho e em agosto eu me mudo para Londres. O Bruno está sendo transferido para lá.
O chão de Clarissa sumiu e ela ficou sem fala.
– Claris? Peloamor, fale alguma coisa. – implorou Lara em expectativa.
– Estou procurando as palavras certas. E imagino que esteja se referindo a julho desse ano. Logo, daqui um mês. Você vai estar a um oceano de distância, não sei se vou conseguir sobreviver.
– Claro que vai! Daremos um jeito. Sempre demos. Se bobear, vou te ver mais em Londres, porque você vai precisar tirar férias para me visitar.
– Férias e visita na mesma frase. Meu Deus! Eu nunca mais vou te ver.
– Claro que vai. Para de fazer a louca sentimental. Você parece uma impostora. Minha melhor amiga iria encarar isso como uma super oportunidade para a minha vida, de maneira pratica e terminaria dizendo algo como: Daremos um jeito e faça valer à pena.
– Ah Lara, você tem razão. Não sei o que está acontecendo comigo.
– Você precisa amolecer mesmo esse coração. Precisa dar uma chance para o amor. Você não dá a menor chance para alguém conquistar seu coração. Não ficou mais de um mês com os últimos caras que tentou namorar.
– Não me sobra tempo para namoro.
– Você fez 30 anos minha amiga, precisa começar olhar para sua vida através de novas perspectivas. O Celso era um excelente partido e era louco por você.
– Ele era muito pegajoso.
– Só porque ele queria jantar e passear de barco no final de semana quando você precisava trabalhar? – disse Lara em um tom irônico, mas divertido.
– Falando assim parece que eu sou louca. Amiga, a secretaria do meu chefe está me ligando insistentemente. Preciso atender. Vamos sair para beber e comemorar hoje. Que tal?
– No bar de sempre. Às 21 horas. Não se atrase, pelo amor de Deus. – implorou Lara, que tinha ficado muito tempo esperando pela amiga que tinha ficado presa no trabalho chegar.
– Combinado! Não vou me atrasar. Preciso desligar.
Clarissa desligou e atendeu a ligação de Monica.
– Oi Monica. Bom dia.
– Ainda bem que você atendeu o telefone. O Marcos antecipou a reunião de status de projetos para as 8 horas e disse que sua presença é imprescindível.
– 8 horas, seria daqui a 20 minutos.
– Melhor pisar no acelerador então. Voa! E não quero pressiona-la, mas ele está de péssimo humor.
Clarissa desligou o telefone e se olhou no espelho. O corpo em excelente forma, o cabelo todo desgrenhado, que estava ainda pior depois do tombo e a roupa de ginastica era pra lá de inapropriada. Seria melhor se ela fosse de pijama, direto da cama. E ela estava suada, precisando de um banho.
Ela preferiu não se lamentar e correu pegar suas coisas. Se trocou no carro, nas paradas em sinal vermelho, fez um coque da melhor maneira que pode e se banhou com seu perfume da Chloé. Passou um batom vermelho, que era a única coisa capaz de conferir algum ar de produção à cara lavada dela e chegou com dois minutos de atraso na reunião, parecendo recém saída de um jardim de rosas brancas e pronta para servir passageiros de avião. Seu penteado parecia o de uma comissária de bordo.
Assim que ela entrou, o chefe olhou para ela da cabeça aos pés, não disse nada e olhou para o relógio.
“Sério? Ele adiantou a reunião em uma hora e me olha assim por atrasar 2 minutos? Tecnicamente, estou adiantada 58 minutos.”
Marcos tinha acabado de se tornar sócio da consultoria e era o vice presidente mais poderoso da empresa. Com apenas 35 anos, tinha feito uma carreira meteórica e seu perfil ambicioso o fez ser considerado um dos executivos mais frios e racionais da companhia. Ele tomava todas as decisões baseado em números e tinha um ego que não cabia na sala quando ele entrava. Era lindo de morrer, mas não tinha nenhum charme. As pessoas não viam a hora de sair de perto dele. Ele exalava poder e autoridade. Há dois anos, ele era chefe de Clarissa e ela pensava em pedir demissão um dia sim, um não. Ele tinha alguns casos de compliance por assédio moral, mas isso não parecia um grande problema porque ele era o executivo que mais trazia dinheiro para a companhia.
Enquanto ele falava sobre os novos clientes, Clarissa se perdeu em seus pensamentos. Sua melhor amiga ia se casar e se mudar para Londres. Sua única amiga. Ela morava em um belo apartamento, impecavelmente mobiliado, mas não se lembrava de ter sentado no seu sofá e lamentava não ter tomado uma única garrafa de vinho da sua adega super abastecida. Ela lembrou de Celso e do sexo delicioso. A última vez, tinha sido no barco exuberante dele, de onde eles tiveram que correr para voltar por causa de um chamado do chefe dela. “Ele era muito pegajoso. Ele terminou comigo por causa da volta para casa naquele dia. A gente poderia viajar em qualquer outro final de semana. Tudo bem que o amigo dele só se casaria naquele final de semana na praia. Gente, sou uma péssima namorada.” E nesse momento o computador dela entrou em modo de espera e apareceu uma imagem de uma montanha que cercava um lago verde esmeralda. Ela olhava para aquela paisagem bucólica e romântica e pensava em ligar para o Celso e convidá-lo para jantar. Mas riu de seus pensamentos. Ela não queria mais o Celso. E ele não queria vê-la pintada de ouro. Ela queria ir para as montanhas. Decidiu que compraria um pacote para um spa na montanha no feriado. Riu mais uma vez de seus pensamentos. Ela não teria um feriado sem trabalhar e odiava lugares pacatos, sem nada para fazer. Ela gostava de barulho e da vida pulsante. E nesse momento, Marcos interrompeu seus pensamentos.
– O que está acontecendo com você? Chega atrasada e fica rindo sozinha. Você poderia compartilhar com o grupo o que está vendo de tão engraçado?
Ela sentiu um arrepio percorrer seu corpo e achou que ia vomitar.
– Não está acontecendo nada. E tecnicamente, cheguei 58 minutos adiantada. – ela disse, se arrependendo completamente do que tinha acabado de dizer. E sentiu todos os olhares perplexos em volta da enorme mesa de mármore, olhando para ela.
– Ah é mesmo? De acordo com a minha agenda você chegou 2 minutos atrasada. E depois dessa sua defesa sobre sua pontualidade, acho que acabei de decidir quem vai ficar com esse caso complexo. Parabéns! Um dos casos mais complexos dos últimos tempos é todo seu. Boa Sorte! Você vai ficar presencialmente em Campos do Jordão durante todo projeto. A Monica vai cuidar das suas acomodações. Eu quero relatórios diários e estarei lá uma vez por semana para uma reunião de status do projeto com você e com o cliente. Melhor ir fazer sua mala. Seu novo cliente te espera lá amanhã para uma reunião de kicfoff do projeto onde você vai conhecer o desafio. Você terá dois meses para garantir a fusão. Nem um dia a mais. Reunião encerrada. Bom dia a todos. – ele disse, já se levantando. E sem falar mais nada, ele saiu da sala.
Clarissa, queria se pronunciar perante aquele tremendo absurdo, mas as palavras lhe faltaram e a reunião estava encerrada afinal.
Ela ficou sozinha na sala, sem conseguir se mover. E lá estava a montanha do papel de parede do computador olhando para ela.
“Vamos nos ver afinal.” Ela pensava, e sem acreditar, conseguiu achar graça de seus pensamentos.
Esse é o primeiro capítulo do livro Derretendo como Chocolate que está disponível das versões kindle e K.U.